segunda-feira, 12 de junho de 2023

SEGUNDA LITERÁRIA: COLUNA DO POETA E ESCRITOR CARLOS MARTINS

 NÓDOA DE CAJU

Por Carlos Martins - (10/06/2023)

É estranho como as sensações, de uma hora para outra, têm o poder de se embaralharem e jogarem por terra nossos cenários perfeitos. — Cenários perfeitos, como se isso fosse possível!

Já pararam para pensar que quando mais estamos seguros de nossa situação é exatamente nesse instante que ela começa a desmoronar? Parece até que a nossa percepção funciona como uma ave de mau agouro, como um mensageiro portador de más notícias que teimam em desobedecer aos nossos quereres e trazerem à tona uma realidade que gostaríamos de deixar embaixo do tapete. Sim, porque a nossa vida assemelha-se a uma faxina em casa.

Primeiro, deparamo-nos com um cenário aquietado em que planejamos a limpeza dos cômodos. Passamos a vassoura para a retirada da sujeira mais pesada e, depois, um pano umedecido com uma fragrância agradável para dar a sensação de frescor ao ambiente. Pois bem, dia desses quando me dedicava à limpeza da sala daqui de casa, reparei que algumas sujeiras teimavam em se perpetuar, não conseguia limpá-las de maneira alguma. Por mais que varresse e passasse o pano úmido, elas não saíam. Estavam grudadas. Decidi que as deixaria ali como testemunhas de que as vidas vividas e compartilhadas na minha casa tinham aquela intensidade marcante que gruda igual nódoa de caju.

Coloquei uma música para alegrar, e segui o trabalho. Interessante como a música tem o poder de adoçar os momentos; sem dizer que também os marca de maneira indelével. Brotou na mente a lembrança de meu saudoso pai, Dom Carlos, como muitos amigos o chamavam, e uma música que gostávamos de ouvir e cantar juntos, “Eu nunca mais vou te esquecer”, do Moacir Franco. Esse moço tem a incrível capacidade de transformar em música momentos de nossas vidas que ainda nem tínhamos dado conta de suas existências.

“(...) Agora é vida sem razão, porque

Tentando orar eu só rezei você

A sua ausência mais e mais me invade

Pediu amor e devolveu saudade (...)”.

Estão vendo? Esse cabra não sabe brincar!

Cato vassoura, balde, pano de chão e vou para outro ambiente, pois a faxina está só começando.

Chego ao coração, batendo em um compasso que bem poderia ser de um forró da Elba Ramalho: “Tanto tempo quanto houver pra mim é pouco / Pra dançar com meu benzinho numa sala de reboco”. Mas o danado está exalando bolero.

“Ah, você está vendo só

Do jeito que eu fiquei e que tudo ficou

Uma tristeza tão grande

Nas coisas mais simples que você tocou

A nossa casa, querida

Já estava acostumada guardando você

As flores na janela

Sorriam, cantavam por causa de você (...)”.

— Eita, coração vagabundo! Não vá nas águas da Dolores Duran que tu vai te arrepender!

Segurei a vassoura com força, tentando iniciar o processo de varrição para outro lugar de todos os boleros que habitam esse velho coração. Mas como? Por mais que a razão ordenasse, os braços não se mexiam. Eles se recusavam a serem cúmplices de ato tão vil. — Como? Impossível, bradavam eles. — O único lugar desses boleros é aqui, no coração — diziam.

Pois bem, armei-me de uma espátula e parti para aquelas sujeiras que não tinha conseguido retirar lá na sala.

























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