A DEDICATÓRIA
“Esta é a voz da liberdade, na apresentação do seu programa para o dia de hoje.” - A voz rouca e carregada no “r” da palavra liberdade mal soava nos alto falantes e seu coração saltava dentro do peito, pois sabia que ele ouviria a dedicatória e a música que ela finalmente teve coragem de lhe oferecer, gastando seu pouco dinheiro, ganhado na noite passada com os prazeres dados aos homens que iam naquele simples e velho cabaré da “cidade alta” onde estava instalada a “voz” do Sr. Everardo, num bairro simples da pacata cidade.
Era meio dia e ela sabia que João estaria em casa almoçando com sua família e por certo ouviria o recado ressoando nos ares do lugarejo.
- E a próxima música é oferecida para alguém das iniciais J. C. S. lá na rua da boiada como prova do seu grande amor. Quem oferece é Dalva Cristina Sousa.
- Como posso ter deixado isso acontecer? Não podia ter me apaixonado por ele. Sei que é casado, tem filhos e vem aqui esporadicamente em busca de uma aventura, nada mais. Porém, desde aquele dia em que me viu sentada na mesa com minhas amigas da casa, ainda no início daquela noite e me provocou, dizendo que eu não sabia dançar a música que tocou nas caixas de som penduradas no caibro de madeira do telhado daquele rústico salão que eu senti algo diferente. O aperto de seus braços fortes sobre a minha cintura, aquele cheiro de musk impregnado no seu pescoço, o seu bailado lento apertando o meu ventre... E a noite foi nossa. Em meio a sorrisos, abraços, alguns copos de cerveja e gozos.
Pela manhã ela se viu pensando em tudo o que acontecera na noite passada. Foi diferente, foi muito prazeroso mas ela sabia que não passaria daquilo e enquanto se dirigia ao terreiro do quintal com um copo de alumínio em uma das mãos e a escova já bem gasta na outra, viajava em seus pensamentos... o movimento da mão ao limpar os dentes o fez pensar em sua dança com ele e ficou por instantes absorta em suas lembranças até despertar pelo estrondo da música que saia daqueles alto falantes pendurado em uma vara bem comprida e com as bocas amarrados em sentidos opostos. Iniciava o primeiro programa do dia daquela ”voz” que se repetiria ao meio dia e as seis da tarde.
E já na mesa do café, ao sorver o primeiro gole da bebida entre a fumaça que saia da xícara e o movimento da cortina de chita que separava a cozinha do salão ela ouviu uma das suas amigas dizer:
- Olha só quem já está acordada... ele não te deixou dormir? Também com um homem daquele eu não dormiria - e soltando uma bela gargalhada, sentou-se a sua frente pegando o bule e despejando o café em uma das xícaras que repousavam sobre a toalha de plástico cheia de desenhos de facas, garfos, colheres, xícaras e pratos que cobriam a velha mesa de madeira. E continuou;
- Não é que ele seja assim tão bonito, mas dança muito bem, tava com um perfume maravilhoso e demonstrava ser muito carinhoso, desde a forma em que sentava as mãos sobre a tua cintura. Coisa rara isso aqui em nosso ambiente de trabalho... te digo mesmo; é cada animal que vem aqui que a gente só atura pelo trocado que eles nos dão e porque temos que pagar o aluguel do quarto.
E Dalva ouvia tudo aquilo ainda a pensar naquele homem...
- É mais tenho que esquecer, hoje o dia vai ser longo. Vou à rua comprar umas roupas pois as minhas já estão manjadas. Aproveito e vejo se o dinheiro vai dar para comprar esmalte também e uma maquiagem, afinal temos que estar sempre bonitas se quisermos atrair os clientes - E levantou da mesa, rumou depressa em direção ao seu quarto. E enquanto trocava a roupa lembrava do toque daquelas mãos em seu corpo...
- Diacho é isso? Parece que tô ficando é doida.... não paro de pensar naquele homem.
Demorou-se uns minutos e saiu rebolando com seu tamanco de salto, sua saia rodada que mostrava o início de suas coxas firmes e bem bronzeadas. Dalva ainda se orgulhava de sua beleza mesmo no alto dos seus 36 anos. Morena roxa como se diz pras bandas do Mearim. Boa estatura, esbelta e cabelos crespos a lhe adornarem as costas sempre nuas permitidas por suas blusas.
Saiu andando firme e bem disposta como se querendo esquecer as lembranças daquela noite. Em seu caminho até a Rua Grande, vez por outra, um gracejo, uma piléria que em sua vida de meretriz já estava acostumada a ouvir. E descendo a calçada para atravessar a Rua Grande, parou e ficou esperando os carros passarem quando novamente pensou nele. Ao primeiro espaço dado pelos veículos, olhando depressa para os dois lados da rua, marchou rapidamente para atravessar e quando já do outro lado, levantando a vista mal pode acreditar no que viu. Aquele mesmo homem que esteve deitado ao seu lado até altas horas. Estava lá, naquela loja de variedades, com sua esposa do lado por trás de um grande balcão. Parecia ser dono do estabelecimento. Não pode demorar em sua constatação, logo seguiu de cabeça baixa mas não conseguiu disfarçar seu olhar e ficou com medo de que eles tivessem percebido.
Por dias ficou a esperar que ele novamente aparecesse, até que numa quarta-feira; geralmente um dia sem movimento na casa, mal pode acreditar no que viu. Mais arrumado ainda ele apareceu no salão, parece que tinha derramado todo o vidro do musk que veio direto em seu nariz. Novo insulto para a dança e nova noite de prazeres. E assim se foi por outros dias, outros meses...
Agora era amor mesmo, constatou quando teve vontade de ir à Rua Grande para vê-lo ao menos de longe já que havia duas semanas que ele não aparecia lá no cabaré. O medo a fez pensar em perdê-lo. Os pensamentos eram voltados para uma única tônica. E se a mulher dele tiver descoberto alguma coisa? E se o tiver proibido de sair de casa à noite? E se aparece lá com ele para tirar satisfação?
Foram dias de angústia e Dalva a gastar seu pouco dinheiro em mais dedicatórias e músicas na “voz” da liberdade, enquanto ela estava presa àquele amor impossível.
Até que um dia, mal pode acreditar que naquela mesma voz, ouviria uma dedicatória seguida de música oferecida à ela.
- E a próxima música é oferecida à Dalva Cristina aqui da cidade alta. Quem oferece é alguém das iniciais J. C. S. – o barulho foi grande no pequeno prostíbulo. As amigas todas pulando de alegria ao ouvirem Odair José cantar: “Eu vou tirar você desse lugar, eu vou levar você pra ficar comigo e não interessa o que os outros vão falar...” E Dalva se derretendo de amores, ouvindo o coro das amigas acompanharem o cantor e os alto falantes.
PorAllan Roberth - 21/01/21
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