segunda-feira, 19 de junho de 2023

SEGUNDA LITERÁRIA: COLUNA DO CARLOS MARTINS

 ROTINA DESAJEITADA

Carlos Martins (19/06/2023)

De repente, um aviso: — Ei, vamos, desperta que já é hora de o dia começar para ti.

Virei-me, acomodei melhor o cobertor, pois é época de seca no cerrado e nesses tempos as noites são mais frias e agradáveis; os amanheceres, nem se diga. A sensação de prazer debaixo das cobertas é algo incrível, um verdadeiro chamariz para aquele famoso “só mais cinco minutinhos aqui”. Não consigo, uma vez acordado, ficar na cama nem pensar. Levanto-me. E o levantar tem todo um ritual a ser seguido: espreguiçar-se, sentar-se e, ainda sentado, dobrar a coberta e acomodá-la aos pés da cama. Ato contínuo, levantar-se.

É interessante como as perspectivas de cada instante rapidamente vão se alterando à medida que nosso corpo vai se aquecendo. Sim, parecemos carro a álcool, precisamos esquentar para atingir pleno funcionamento. E nesse intento, chego à cozinha para preparar o desjejum. E claro que não pode faltar um café bem quentinho... e forte. Claro, senão fica parecendo água enferrujada. Esquentar o pão com manteiga na frigideira, fazer ovos mexidos e sentar-se à mesa com meus dois meninos para o café da manhã é algo que não abro mão de jeito nenhum e que me dá grande prazer, pois sei que estou construindo memórias com eles e, acima de tudo, construindo pontes seguras de convivência e cumplicidade.

E a vida vai se avivando cheia de riqueza. Uma conversa aqui, uma piada ali, um beijo da mulher amada. Sim, elas têm esse incrível poder: dão-nos vida, força.

E o dia vai passando qual cachoeira que de longe enxergamos uma queda contínua, mas à medida que nos aproximamos, conseguimos divisar que a água passa por alguns percalços no seu trajeto. E se adentrarmos, veremos que, na verdade, vários pingos e jatos d’água desgarram do trajeto principal.

Nesse instante, cai a ficha de que nossos olhos podem muito bem nos enganar. Que o juízo deve ser formado observando-se todos os lados e de distâncias diferentes. A visão ao longe traz o entendimento do todo enquanto a proximidade dá as nuances necessárias para o entendimento completo. E dessa forma, o dia vai passando com os distanciamentos e proximidades necessários para a vida acontecer plenamente.

O mundo contemporâneo anda cheio de armadilhas para seus inquilinos desavisados. As telas repletas de informação e entretenimento para qualquer momento e para qualquer gosto dão-nos a falsa sensação de que podemos ser onipresentes. 

As novas lógicas do trabalho, em que podemos estar presentes física ou remotamente, dão a noção de que, realmente, as coisas andam mudadas. As questões relacionadas à felicidade... 

Lembro que meu velho pai me dizia que a verdadeira felicidade estava no fato de deitar-se à noite e colocar a cabeça no travesseiro e não ter assunto com ele. Dormia rapidamente. Gosto muito dessa simplicidade de pensamento. Não ter assunto com seu travesseiro é o mesmo que dizer: o meu dia foi cheio de afazeres, cumpri todos. A doutrina sistematizada por Allan Kardec afirma que a verdadeira felicidade encontra-se na certeza do cumprimento da missão. Simples assim.

E, agora, contemplando o por do sol com tons alaranjados, uma das muitas belezas do cerrado brasileiro, vejo aproximar-se o momento de saber se terei ou não assunto com meu travesseiro.

— Ah, como sinto saudade das rotinas vividas antes do advento da modernidade em que todo o dia era conversado nas portas das casas em animada conversação!

























Um comentário:

  1. Muito interessante a passagem, nessa crônica, pelas várias maneiras de vermos o que está à nossa frente e tirarmos nossas conclusões, que nos animam nos passos seguintes...ou não.

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