UMA FAMÍLIA E TANTO
Certa vez, fui a uma festinha para relaxar um pouco com alguns amigos e familiares, estava trabalhando muito, enormes afazeres, muita responsabilidade... Era um tempo árduo, de muita pressão em que todo tipo de convívio estava difícil. O verão tinha sido extremamente rigoroso, o astro-rei parecia enraivecido com os seres humanos, seus primeiros raios matinais já iniciavam a carreira do dia esturricando tudo em que tocava. Não demorou muito, recebemos a visita dos frios ventos do outono que trataram de varrer o quase nada que havíamos, a duras penas, realizado na estação anterior. Chegou o inverno com o seu intenso frio, céu cinza, horizonte nublado, sem cores, sem diversidade... sem graça! Mas trazia consigo a esperança de que as cores, a algazarra e os belos campos cheios de capim seriam mais uma vez contemplados pelo alegre cantar dos pássaros, o flanar diário e despretensioso da borboleta e a senvergonhice do beija-flor a flertar com o jardim inteiro, que seriam servidos dali a pouco pela primavera.
Estávamos animados com a possibilidade de conversarmos sobre assuntos pouco importantes, aqueles que nos fazem levantar brindes a todo momento, nos abraçar pelo simples prazer do verdadeiro toque humano, pela piada que de tão sem graça arranca contagiantes gargalhadas, enfim, com a iminência de uns poucos momentos de descontração.
No tempo que marca a transição do outono para o inverno, em que os ventos se acalmam e o frio fica mais intenso, a vila acolheu dois visitantes que chegaram pedindo ajuda para escaparem dos rigores do inverno que se avizinhava. Um homem com a tez já completamente esbranquiçada, sem características adicionais que o diferenciasse das demais pessoas, a outra, uma moça na flor da idade, bela, de olhos vivos e atentos, portadora de porte aristocrático embora trajasse roupas muito simples e já um tanto desgastadas. Apresentaram-se como pai e filha.
A comunidade acolheu-os prontamente, pois viviam tempos estranhos e como naquele ano o clima não estava ajudando em nada, tudo indicava que o inverno seria dos mais rigorosos. Não demorou muito, já estavam instalados numa cabana de um único espaço que acomodava duas camas, um fogão construído de barro com dois orifícios para colocação das panelas e, ao lado, tosca lareira que, quando acesa, dava conta do aquecimento do habitáculo.
Ao amanhecer, logo aos primeiros raios solares, a garota, organizando sua cama, falou: — Acorda, pai, o dia já raiou e a vida precisa continuar.
O velho homem abriu os olhos e espreguiçando-se disse: — Bom dia! Vamos, sim, filha. Temos muito trabalho pela frente. Hoje, mesmo, vou conversar com os líderes da vila para que nos permitam participar dos afazeres para podermos retribuir por nossa acolhida.
— Então, levante-se logo. Tem pão, mel e leite de cabra em cima do fogão. Quando acordei, encontrei, à porta, esta cesta com os alimentos.
O velho comeu e, limpando os restos de comida da barba branca e desgrenhada, despediu-se da filha. Ganhou a rua e rumou para o local no qual tinham sido recepcionados na noite anterior a fim de conversar com o líder da comunidade para saber como poderia ser útil nos trabalhos da vila. Após a conversa, ficou acertado que eles procurariam contribuir nas tarefas de preparação para o inverno; ele, ajudando os homens nos afazeres mais pesados, e a filha, as mulheres na organização, contabilidade, preparação e armazenamento dos víveres da comunidade para o enfrentamento inverno.
Adaptaram-se facilmente à lida.
A corta da lenha para o aquecimento e preparo dos alimentos era trabalho um tanto penoso e, para tanto, os homens se dividiam em grupos para melhor realizá-lo. Um grupo tinha por tarefa procurar árvores já caídas ou as que ainda se encontravam de pé, mas que já estivessem apresentando sinais de senilidade. Outro, cortava os galhos e troncos das árvores selecionadas e, por fim, o último, que era responsável pelo transporte e empilhamento da madeira em locais pré-definidos na vila.
O trabalho corria como de costume, com pequenas paradas para descanso. De repente, a atenção de todo o grupo se volta para uma discussão sobre a escolha de uma árvore. Um dos homens afirma que fora abatida uma que ainda estava viçosa, era madeira verde; portanto, imprópria para utilizar para aquecimento e na preparação da comida em virtude da grande quantidade de fumaça que produziria. A discussão seguiu a acalorada até que o visitante interveio: — Pessoal, a árvore pode não ser a mais apropriada, mas já foi abatida, resta-nos utilizá-la da melhor maneira possível para não a perdermos.
Todos concordaram e os trabalhos prosseguiram em paz.
— Trabalho iniciado — pensou o visitante.
Enquanto isso, as mulheres cuidavam da preparação dos alimentos. Um grupo tratava de desossar as carnes dos animais abatidos e salgá-los. Outro, em acondicioná-las e organizá-las no celeiro da vila. O trabalho seguia dentro da normalidade quando uma delas dissera que estava preocupada, pois naquele ano os homens não tinham conseguido abater muitos animais de grande porte e que a maioria das carnes provinha de pequenos animais e, mesmo assim, parecia que não seriam suficientes para o inverno. Precisariam ter muito cuidado com as tarefas de curtição da carne, pois não poderiam correr o risco de qualquer tipo de perda.
À noite, toda a comunidade se reuniu ao redor de grande fogueira. Durante as conversações, definiram que precisariam racionar madeira e comida. O aquecimento e a alimentação, sempre que possível, seriam feitos de maneira comunitária, ou seja, algumas casas se uniriam para se aquecerem e fazerem as refeições conjuntamente. Tal decisão buscava, também, promover a socialização das pessoas para relaxarem dos estafantes trabalhos do dia. Todos concordaram e, com o adiantado da hora, despediram-se e foram se aninhar em suas camas para descansar.
Ao chegarem à casa, pai e filha fecham a porta cuidadosamente e se acomodam em suas camas.
— Filha, como foram os trabalhos, hoje?
— Tudo bem. Aprendi bastante. Vi como é feita a cura das carnes e sua preparação para acondicionamento. E vi, ali, uma brecha para fazer o meu trabalho.
— Hoje, eu consegui avançar um pouco no meu trabalho com os homens — falou o pai. — Falei para um dos homens que cortasse uma árvore nova poque produziria mais madeira. Ele concordou. Quando foram prepará-la para o armazenamento, descobriram que se tratava de uma árvore ainda verde e isso gerou uma grande discussão entre os homens. Já plantei o germe da discórdia entre eles, amanhã, vou colocar mais lenha na fogueira, se é que me entende — disse o velho com um sorriso maroto no canto da boca.
Em pouco tempo, o trabalho na vila já não transcorria como dantes. Todo dia havia uma discussão aqui, uma cara amarrada ali e descontentamento por todo lado. As reuniões comunitárias tinham sido canceladas por falta de adesão. A união das casas para aquecimento e alimentação conjuntos, também, já não ocorria. A vida da comunidade, em pouco tempo, encontrava-se completamente transformada.
— O trabalho aqui nessa vila já está quase completo — disse o velho.
— Concordo, pai. Entre as mulheres já consegui semear todo tipo de discórdia. As brigas correm soltas entre elas todo dia.
— Entre os homens já houve até ameaça de morte. O clima está esquentando! — exclamou o velho gragalhando.
— Pai, não gosto dessa forma que estamos nos tratando. Não fui acostumada a isso, gosto de chamá-lo pelo nome, como o senhor mesmo me ensinou. Nossa família sempre foi unida e isso, acredito, passa por todos os ensinamentos que o senhor e a mamãe nos passaram, incluindo nos chamarmos pelos nossos nomes.
— É verdade, filha. A partir de agora não precisamos mais esconder nossos nomes.
— Muito bem, Vício — exclamou a filha alegremente e aplaudindo o pai.
— Então, Inveja, será se sua mãe e seus irmãos estão, também, tendo sucesso nas suas missões? A tarefa deles era bem grande e complicada, mas confio muito neles, são muito eficientes e o resultado dos seus trabalhos aparecem rapidamente.
— Vício, a mamãe...
— Inveja, mamãe não, Mentira. E seus irmãos Fanatismo, Negacionismo e Ódio, não se esqueça de que decidimos nos tratar pelos nossos nomes.
— Bem lembrado.
Mentira, Fanatismo, Negacionismo e Ódio foram encaminhados para o futuro para realizarem importante trabalho. Vício os enviara para o Novo Mundo a fim de dominarem todos os Estados, não importando o quê necessitassem fazer. Na verdade, essa era a máxima da família: sempre cumpririam as suas missões não importando as consequências, quanto piores, melhores.
— Pelas últimas notícias que recebi de Mentira, eles estão tendo sucesso na missão — disse Vício. — Primeiramente, Mentira se instalou entre os governantes do local promovendo todo tipo de discórdia e confusão, a ponto de ninguém mais conseguir confiar em qualquer informação. Ela recebeu até um apelido por lá: Fake News. Chique toda!
— No momento, os trópicos ameríndios encontram-se do jeito que eu planejei: ninguém se entende, todos trabalham com exacerbações de sentimentos e opiniões, ninguém consegue aproximar o povo alegre do lugar e tudo gira em torno daquilo que Mentira fala e Fanatismo, Negacionismo e Ódio espalham. Eles estão realizando um trabalho lindo e competente — completou Vício.
— Que bom, Vício, fico feliz com notícias tão alvissareiras. Agora, vamos dormir o sono dos justos.
— Inveja, olhe os modos! Você sabe que não gosto de palavrões!
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