Coluna do Dr. Marco Adriano Ramos Fonseca, Juiz de Direito.
Nesta semana em que se comemora o Dia do Magistrado (11 de Agosto) tenho a honrosa missão de apresentar algumas reflexões sobre a representatividade racial no Judiciário Brasileiro. A data escolhida para homenagear os magistrados faz alusão ao dia de criação dos primeiros cursos de Direito no Brasil, em 1827, nas cidades de Olinda (PE) e São Paulo (SP), sendo também denominado de Dia do Estudante e Dia do Advogado.
De início, destacamos a origem da palavra magistrado, derivada da palavra latina magistratus, que por sua vez surgiu de magister, palavra que significa “chefe”, “diretor”, “gerente”, compreendendo os detentores de cargos políticos, que exerciam sua autoridade derivada do poder estatal. Em tempos modernos, tal nomenclatura designa aqueles que são investidos na função de membros do Poder Judiciário.
Nesse cenário, evidencia-se que o Magistrado exerce uma função singular e essencial no Estado Democrático de Direito, integrando um dos poderes da República, cuja investidura na carreira ocorre mediante aprovação em concurso público.
Ao mesmo tempo em que consiste numa função singular, a magistratura deve refletir o pluralismo que compõe a sociedade brasileira, visando alcançarmos os valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, consagrados no preâmbulo da Constituição Federal de 1988.
Mas afinal, quem são os Magistrados Brasileiros?
Para responder a esta indagação, e revelando o panorama da representatividade racial no âmbito do Poder Judiciário Brasileiro, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) desenvolveu a Pesquisa do Perfil Sociodemográfico dos Magistrados em 2018, identificando que apenas 18,1% dos magistrados brasileiros se autodeclararam negros (pretos ou pardos), e quando se acrescenta o recorte de gênero, apenas 6% são magistradas negras.
No mesmo ano, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) realizou a pesquisa “Quem somos. A Magistratura que queremos”, apresentando índices semelhantes, identificando que quase 80% dos juízes de 1º grau se declaram brancos, e 18,1% pardos e pretos; dentre os magistrados de 2º grau, 84,7% se declaram brancos e apenas 11,9% se declaram como pretos e pardos; entre os magistrados aposentados, apenas 9% se declararam negros; sendo que 86,5% se declaram brancos.
Apresentamos na tabela abaixo a distribuição de magistrados de acordo com o Estado em que atuam (Fonte CNJ 2018):
A partir de tais indicadores, evidencia-se uma manifesta desproporcionalidade e, consequentemente, uma baixa representatividade dos negros no Poder Judiciário, ao se considerar o universo da população brasileira, que é composta, em sua maioria por negros, totalizando 56,4% da população nacional (sendo 9,2% de pretos e 47,2% de pardos), conforme dados projetados para o 1ª trimestre de 2020 pelo IBGE.
Ademais, conforme a pesquisa do IBGE sobre Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, divulgada em novembro de 2019, no mercado de trabalho os negros representavam 64,2% dos desocupados e 66,1% dos subutilizados. Segundo a mesma pesquisa, fazendo um paralelismo com o conceito de magister, somente 11,9% de pessoas em cargos gerenciais de mais alta renda eram pretas ou pardas.
A análise dos dados em questão perpassa por uma reflexão quanto a perspectiva do senso comum de qual o papel relegado aos negros na sociedade, ocupando geralmente funções secundárias e subalternas, e como isso reflete na exclusão e no racismo ainda presentes nos dias atuais. Daí a necessidade de compreensão do fenômeno do racismo com uma prática estrutural e excludente, já que poucos negros ocupam espaços de poder e cargos estratégicos.
Destaque-se, por oportuno, que a necessidade de reflexões acerca do panorama das desigualdades sociais por cor ou raça está alinhada ao Programa de Atividades para a Implementação da Década Internacional de Afrodescendentes (2015-2024), aprovado pela ONU, com o objetivo de promover o respeito, a proteção e o cumprimento de todos os direitos humanos e as liberdades fundamentais dessa população, viabilizando sua participação plena e igualitária em todos os aspectos da sociedade.
Por conseguinte, o atual cenário dos debates sobre questões raciais deve ser pautado a partir da perspectiva estrutural, e como as instituições públicas e privadas podem contribuir efetivamente para a minimização desse distanciamento entre o discurso jurídico e a prática das políticas públicas.
Nessa linha, são valiosas as políticas públicas mais recentes, especialmente no cenário Pós-Constitucional de 1988, que consagraram instrumentos de visibilidade da temática racial, entre elas, o estabelecimento de ações afirmativas, como garantia de justiça social e racial, bem como, o alinhamento com os Tratados Internacionais de que o Brasil é signatário, entre eles a Declaração Internacional de Direitos Humanos e a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial.
Destaque-se, ainda, a ratificação pelo Brasil, em 12 de maio de 2021, da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e formas correlatas de Intolerância, aprovada pelo Congresso Nacional e incorporada com status de Emenda Constitucional, que em seu art. 9º consagra o compromisso dos Estados subscritores em garantir que “seus sistemas políticos e jurídicos reflitam adequadamente a diversidade de suas sociedades, a fim de atender às necessidades legítimas de todos os setores da população, de acordo com o alcance desta Convenção”.
Nesse panorama, o Poder Judiciário Brasileiro vem demonstrando o esforço para a consolidação de novos caminhos para assegurar o pluralismo na composição da magistratura, merecendo destaque a Resolução CNJ nº 203, de 23/06/2015, que dispõe sobre a reserva aos negros de 20%(vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e de ingresso na magistratura, a Resolução CNJ nº 336, de 29/09/2020, que dispõe sobre a reserva de 30%(trinta por cento) das vagas oferecidas para os programas de estágio, e a Resolução CNJ nº 382, de 16/03/2021, que estabelece a reserva do percentual mínimo de 20%(vinte por cento) das serventias extrajudiciais vagas oferecidas no certame de provimento e de remoção.
Porém, não basta apenas a reserva de vagas em concursos públicos, posto que conforme os dados da Pesquisa da AMB, de 2199 magistrados entrevistados apenas 14 foram aprovados para as vagas destinadas às ações afirmativas até 2018, correspondendo a 0,6% da amostragem, evidenciando que os esforços devem ser contínuos e progressivos para que se atinja os propósitos almejados.
Destacamos, assim, outras iniciativas institucionais para o debate e promoção de política judiciária antidiscriminatória, a exemplo do Encontro Nacional de Juízas e Juízes Negros (ENAJUN), realizado anualmente desde 2017 e que em 2021 será realizado nos dias 25 a 28 de outubro, em formato de Webinário, o Grupo de Trabalho sobre Igualdade Racial no Poder Judiciário, instituído no âmbito do CNJ, o Fórum Nacional de Juízas e Juízes Negros contra o Racismo e toda forma de discriminação (FONAJURD), a Diretoria de Promoção de Igualdade Racial da AMB instituída em julho/2020, além dos Comitês temáticos no âmbito dos tribunais brasileiros, a exemplo do Comitê de Diversidade do TJMA, tendo entre seus objetivos estratégicos promover a conscientização para a necessidade de respeito à diversidade e realizar eventos voltados para as questões referentes à diversidade, visando à erradicação de preconceitos e práticas discriminatórias.
Nesse sentido, a Política Judiciária Antidiscriminatória se amolda aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da ONU, que foram incorporados à Estratégia Nacional do Poder Judiciário 2021-2026 pela Resolução CNJ nº 325, 29 de junho de 2020, especialmente o ODS 10 (Redução de Desigualdades), em sua Meta 10.3 visa garantir a igualdade de oportunidades e reduzir as desigualdades de resultado, inclusive por meio da eliminação de leis, políticas e práticas discriminatórias e promover legislação, políticas e ações adequadas a este respeito, e o ODS 16 (Paz, Justiça e Instituições Eficazes), em sua Meta 16.7 pretende garantir a tomada de decisão responsiva, inclusiva, participativa e representativa em todos os níveis e em sua Meta 16.b, de promover e fazer cumprir leis e políticas não discriminatórias para o desenvolvimento sustentável.
Destarte, trata-se de um processo progressivo de ressignificação das contribuições e do protagonismo dos negros na sociedade, e da construção de uma identificação e emancipação a partir de novas perspectivas, que certamente contribuirão para a consolidação de uma política destinada a eliminar a discriminação racial em todas as suas formas.
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