sexta-feira, 23 de abril de 2021

PEDREIRENSES PELO MUNDO: Coluna do Carlos Augusto Martins Netto.

 REMÉDIO PARA DOIS

Por Carlos Augusto Martins Netto - Servidor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Farmacêutico, Escritor e Poeta.

Outro dia, recebi uma visita que, pelo que constatei durante a conversa, já vinha há algum tempo me rondando.

— Boa noite! Como vai? Vamos entrar. Fique à vontade.

Ela agradeceu. Entrou e, acomodando-se numa cadeira, fixou o olhar em meus olhos. Era um olhar duro, profundo que parecia querer descobrir algo somente por esse gesto. Confesso que fiquei um pouco desconcertado. Resolvi puxar conversa para desanuviar o ambiente.

— E aí, como vão as coisas?

— Tudo bem. Quer dizer...

Notei que ela tinha ficado um pouco desconcertada com a minha pergunta. Mas era uma pergunta retórica para iniciar um bom bate papo, daquelas que não necessitam de resposta. Mas ela respondeu e, ainda por cima, tentou emendar algo que não foi capaz de externar e que ficou suspenso por sua voz. Dessa vez quem fixou a vista fui eu. Olhei-a bem fundo, esbocei um sorriso, para deixá-la mais à vontade.

— Então, meu amigo, ultimamente, ando com minha cabeça cheia de assuntos inacabados, vida em reticências, sentimentos conturbados... não tenho conseguido... não posso... sei lá!

— Calma, minha querida. Respire fundo.

Atendendo às minhas solicitações, iniciou uma inspiração bem profunda. Não parecia que sorvia ar, mas algo extremamente pesado que a maltratava a cada movimento de seu peito arfante. E passava a mão no peito desferindo movimentos como que para ajudar a engolir. A simples respiração era-lhe penosa. Fiquei pensando o que estava ocorrendo com a minha amiga. Sempre tão alegre e comunicativa, agora, padecendo daquilo que não a deixava nem respirar.

Amiga, calma. Olhe para mim... bem dentro dos meus olhos. Não desvie o olhar. Encare-me profundamente como a procurar por algo dentro de mim. O que vês?

— Bom... não sei... talvez...

— Calma, não precisa querer responder rapidamente. Na verdade, nem precisa responder. Procure sem pressa. Imagine que o meu olhar é a porta de entrada para um lugar que queres muito ir ou estar. Ou onde está alguém que queira muito encontrar. Saiba que esta porta se abrirá ao simples toque da sua mão. Venha. Entre e encontre o quê procuras.

Notei que ela relaxou um pouco e vi algumas lágrimas derramarem pelo seu rosto. Inicialmente, uma ou duas que caminhavam timidamente por suas faces e que, sem demora, se transformaram num estouro de boiada. Abria a boca, mas as palavras ficavam entrecortadas por soluços que insistiam em deixar velado aquilo que já estava pronto para ser revelado. A situação toda parecia um parto em que a criança teria de ser puxada a fórceps. Aos poucos, o pranto foi desanuviando e os músculos do rosto começaram a relaxar a ponto de eu até esperar um lapso de sorriso no canto de sua boca.

— Melhorei.

— Então, o que está acontecendo?

— Tenho vivido uma vida muito estressante com todo esse horror da pandemia. Não tenho reagido muito bem a essa história de não poder cumprimentar as pessoas com toques e beijos. Tenho saudades dos meus amigos e parentes. Sinto falta dos encontros em família em que nossos brindes eram feitos com muitos abraços, beijos, gritos de contentamento... Tenho vivido de saudades!

Parece que o estouro de lágrimas abriu a porteira que a tudo represara. E continuou falando.

— Hoje, acordei com um pensamento a martelar a minha cabeça: tenho de ter responsabilidade com o outro. Isso é muita doideira! Como me responsabilizar pelos outros? Que história é essa? Já não basta a minha vida, que está uma loucura! Não estou conseguindo resolver os meus problemas, imagine o dos outros! Não consigo, não consigo!

— Menina, já passou pela tua cabeça que a responsabilidade para com o próximo, na verdade, inicia-se com a responsabilidade para consigo próprio? Que ao termos cuidados conosco nos habilitamos para cuidarmos do outro? Tudo começa em nós. O nosso equilíbrio nos dá a habilidade para nos colocarmos no lugar do próximo, compartilharmos da sua dor e diminuir, mesmo que só um pouco, o seu fardo. Cuidar do próximo é um remédio que age também em nós.

Ficamos por algum tempo conversando sobre como será bom quando tudo isso acabar e pudermos voltar a sermos como antes. Aos poucos, notei que minha amiga estava recuperando seu equilíbrio. Seus olhos negros, agora, brilhavam como duas jabuticabas, lindos. Sua face, outrora pálida, recuperara o viço. Olhou-me, mais uma vez, agradeceu a conversa, despediu-se e foi embora.

Fiquei extremamente feliz em ter podido dar escuta às dores da minha amiga e, cá comigo e meus botões, iniciei uma prece de agradecimento. Ao final, intenso sentimento de gratidão invadiu-me. Coloquei um sorriso maroto no canto da boca, respirei fundo e pensei: muito obrigado, minha amiga.
































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