sexta-feira, 30 de abril de 2021

PEDREIRENSES PELO MUNDO: Coluna do Carlos Augusto Martins Netto.

 NÃO É CONVERSA DE BAR. 

Por Carlos Augusto Martins Netto - Servidor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Farmacêutico, Escritor e Poeta.

O Brasil está vivendo um momento em que as polarizações dão (ou tentam dar) a toada do funcionamento da máquina estatal em todos os seus níveis. A diversidade de correntes ideológicas, a meu ver, são salutares para o desenvolvimento e vivência plenos da democracia. E a democracia pressupõe, minimamente, o respeito às leis — o famoso Estado Democrático de Direito — e a liberdade de expressão, não excluindo a assunção das consequências advindas da sua prática.

Recentemente, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, mais conhecida pela sua sigla Anvisa, órgão regulador em vigilância sanitária, nascida como consequência da CPI dos Medicamentos ocorrida no ano de 1999, vem aparecendo, quase que diariamente, na vida dos brasileiros em virtude da situação pandêmica pela qual passamos o mundo inteiro.  Uma das suas atribuições legais é regular o mercado de medicamentos dentro do território brasileiro, incluindo vacinas. Nesse escopo, ela é responsável, por exemplo, pela regulação da produção registro, importação, comercialização, transporte, armazenamento, dentre outros, de todos os medicamentos e vacinas dentro do território nacional, e, para tanto, tem à sua disposição documentos legais e técnicos (leis, decretos, portarias e resoluções) que norteiam sua atuação em cada uma dessas atividades.

No caso específico das vacinas, hoje, o Brasil tem em seu arsenal no combate à covid-19 as vacinas Coronavac, fabricada pelo Instituto Butantã, com registro de uso emergencial e já em uso; a vacina da Pfizer-Biontech, com registro definitivo, mas ainda sem uso no Brasil e a vacina da AstraZeneca-Oxford, fabricada pela Fiocruz, com registro definitivo e já em uso no país.

Cabe frisar que a autorização para uso emergencial consiste numa ferramenta que a Anvisa se vale para permitir que a população brasileira tenha acesso a medicamentos ou vacinas que ainda não passaram pelas avaliações completas de registro, mas que os dados preliminares dos estudos de Fase 3 já demonstram, principalmente, segurança e eficácia. Foi o que ocorreu com as vacinas já aprovadas. Atualmente, as vacinas da AstraZeneca-Oxford e da Pfizer-Biontech já possuem registro definitivo no Brasil.

Em virtude da má (ou nenhuma) coordenação nacional da pandemia, Estados e municípios procuraram meios legais para tentarem controlar a invasão do coronavírus em seus territórios e, para tanto, definiram estratégias, dentre elas a importação direta de vacinas, mais especificamente a Sputinik V, de fabricação russa.

A legislação sanitária atual permite a importação de medicamentos e vacinas que ainda não estejam registrados no Brasil; para isso, devem ser encaminhados os dados de segurança e eficácia que já foram gerados para que a Anvisa possa avaliá-los e se manifestar sobre a autorização temporária de uso emergencial. Nesse ponto cabe lembrar que os critérios de aceitação variam entre os países, podendo ocorrer de uma vacina ter seu uso emergencial autorizado em um país e em outro não. Fato que ocorreu com a Sputinik V, que foi autorizada na Argentina, por exemplo, mas não no Brasil, até o momento.

A Anvisa definiu os requisitos mínimos para a autorização temporária de uso emergencial e sendo eles públicos, estão à disposição do público em geral por meio do seu sítio eletrônico.

No caso específico da Sputinik V, foram detectados problemas no desenvolvimento, ausência ou insuficiência de dados de controle de qualidade, segurança e eficácia. Dentre esses, vamos destrinchar aqui os pontos mais relevantes e menos técnicos para que todos possam entender a decisão tomada. Contudo, todos poderão acessar pela plataforma YouTube a íntegra da 7ª Reunião da Diretoria Colegiada da Anvisa que tratou do assunto.

Precisamos começar pela tecnologia de fabricação da Sputinik V, que usa um vírus (adenovírus) como vetor para levar o código genético do coronavírus causador da covid-19 para dentro das células dos seres humanos. Quando o nosso sistema imunológico é apresentado às particularidades do código genético do coronavírus, espera-se que ocorra a formação de anticorpos contra a covid-19. Cabe ressaltar que os adenovírus, normalmente, têm a capacidade de causar danos às pessoas, entretanto, os utilizados na vacina passam por um processo de inativação de sua capacidade de replicação que, nada mais é, a forma de multiplicação viral. Grosso modo, isso faz com que o adenovírus perca seu potencial de causar doenças e sirva somente como um transportador do material genético do coronavírus.

A Sputinik V apresentou problemas de segurança em virtude de sua tecnologia de produção. Os dados encaminhados mostraram a presença de adenovírus replicante na vacina, ou seja, adenovírus que ainda mantêm capacidade de multiplicação e, portanto, causar danos à saúde das pessoas. Esse fato tem a potencialidade de fazer com que a vacina apresente variada gama de eventos adversos. Mas, com certeza, virar jacaré não se encontra entre eles.

Além disso, foram verificadas limitações na avaliação de causalidade dos eventos adversos sérios causados pela vacina. Também se observou falhas no relato dos eventos adversos tanto pelo participante da pesquisa quanto pelos centros clínicos, bem como a ausência de análise do perfil de segurança por faixa etária, de pessoas com comorbidades e de indivíduos soropositivos para o vírus da covid-19, por exemplo. Tais informações são muito importantes, pois deverão constar na bula da vacina para orientar tanto profissionais de saúde quanto o público em geral. 

Quanto à eficácia, foram detectados vários problemas na realização do estudo clínico, dentre eles, falta de padronização do intervalo de tempo, a partir do início dos sintomas, para a coleta de amostras para realização do exame de PCR, resultando em falta de confiança no resultado do estudo, pois não se consegue determinar, com certeza, a quantidade de participantes que desenvolveram a covid-19 durante o estudo. E isso vai impactar diretamente no cálculo da eficácia da vacina.

Um outro ponto importante, no que se refere à eficácia de uma vacina, é a avaliação de imunogenicidade, ou seja, a capacidade que ela apresenta de estimular a produção de anticorpos que neutralizem o patógeno alvo. Portanto, a quantificação desses anticorpos reveste-se que grande importância a essa altura da pesquisa. Para isso, é necessário que se utilizem métodos validados, isto é, que sejam padronizados por meio de parâmetros científicos que assegurarão a produção de resultados semelhantes frente às diversas situações e, portanto, uma quantificação confiável da produção de anticorpos contra o coronavírus. Tal fato não foi comprovado para a Sputinik V. Ou seja, restaram dúvidas sobre a capacidade de a vacina induzir uma resposta imune.

A avaliação para autorização temporária e emergencial realizada pela Anvisa já consiste num rito mais simplificado em relação ao registro propriamente dito, contudo não quer dizer que as questões de segurança e eficácia irão ser relegadas a segundo plano por conta da situação pandêmica presente. Vivemos um tempo diferente da Idade Média, nossa época pressupõe comprovação científica para tomada de decisões, e essa questão é uma delas.

Por fim, qualquer tipo de politização de uma discussão iminentemente técnica traz enormes prejuízos, entre eles a disseminação de informações enviesadas, na melhor das hipóteses. A população brasileira precisa e aderiu à vacina, seja ela qual for, desde que tenha seus dados avaliados e aprovados pela Anvisa, como a autoridade reguladora sanitária brasileira. Qualquer discussão de vacina por fora desses padrões são meras conversas a serem realizadas à luz das cervejas geladas que transformam o cidadão comum em especialista de todas as coisas.




































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