sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Pedreirenses Pelo Mundo: Coluna do Carlos Augusto Martins Netto.

 Shakespeare e a mochila

Por Carlos Augusto Martins Netto - Servidor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Farmacêutico, Escritor e Poeta.

O Vicente é um cara afeito a rotinas. Acho que a realização sistemática das coisas deixa a vida mais previsível, mais fácil de ser vivida. O despertador do celular toca por volta das cinco da matina; como gosta de dar uma mornada na cama, desliga-o e volta a deitar-se. Cinco minutos depois, a televisão liga com o jornal que passa na programação do final da madrugada. Sim, liga sozinha porque o Vicente é um entusiasta da tecnologia e programa sua TV para ligar às cinco e meia da manhã. A partir daí, pula da cama e inicia suas tarefas do dia. Higiene pessoal, acordar as crianças, preparo do café da manhã, desjejum, ajudar a molecada a colocar o uniforme da escola, vestir-se e sair. Sim, tudo nessa exata sequência para que não esqueça nada. — Quem esquece as coisas é porque é desorganizado — gaba-se.

Após a van escolar pegar os meninos, pendura sua inseparável mochila nas costas e ruma para a parada de ônibus. Nela, carrega sua carteira com documentos pessoais e algumas notas de baixo valor — caso seja assaltado, o prejuízo é menor! — um kit com escova, pasta e fio dental, para a higiene bucal após as refeições que faz fora de casa; desodorante, perfume e escova de cabelo; e até uma muda de roupa íntima “porque adivinhar é pecado!”, afirma acenando a mão com o dedo indicador em riste.

A quinta-feira amanheceu chuvosa, leve neblina a abraçar o cotidiano que ora começava, mas nada disso era motivo para afastar o Vicente do seu script diário. Fez tudo exatamente igual fazia todo santo dia e, ao entrar no ônibus, sentou na cadeira de sempre — conseguia esse feito porque morava próximo à parada final e procurava chegar com antecedência para ter a sorte de seguir a viagem até o trabalho sentado. E reputava que tudo isso era devido à sua rotina. Vai ver era mesmo. Mas nesse dia uma senhora que ele nunca tinha visto antes sentou no banco à sua frente com o seu garoto. E o menino falava pelos cotovelos! Parecia que tinha sido vacinado com agulha de vitrola. Eita, que o moleque não parava. “Mamãe, o que é isso?”. Mamãe, por que aquilo?”. E a mãe, pacientemente, ia respondendo cada uma das perguntas, mas o garoto não se dava por satisfeito. E aí veio a pergunta que desandou as estruturas do Vicente:

— Mamãe, qual é o objetivo do mundo?

— Como, filho? — perguntou a mãe respirando fundo, não porque não tinha entendido a pergunta, mas para ganhar tempo para pensar na resposta.

— Mãe, qual o objetivo do mundo?

O Vicente, um homem que afeito a reflexões filosóficas, pensou que essa seria um ótimo questionamento para matar o tempo da viagem entre sua casa e o trabalho. E debruçou-se sobre ele.

A primeira resposta que surgiu tinha a ver com a vida, seria para gerar vida. “Acho que não”, argumentou o Vicente ao seu próprio pensamento. “Até porque há mundos em que não existe vida, pelo menos igual à que se conhece aqui na Terra”. — Ah, guri terrível! — Será se ele estava se referindo à Terra ou a qualquer mundo do universo? — E agora, pergunto ou não pergunto?

Essa questão tocou profundamente o Vicente porque achava que sem a resposta não conseguiria avançar. E iniciou verdadeira batalha dentro de si levantando prós e contras sobre fazer ou não fazer a fatídica pergunta ao garoto. A sua cabeça mais parecia um turbilhão, pensamentos de todos os naipes iam e vinham ser qualquer conexão entre si, uma verdadeira tempestades de ideias, tudo no intuito de decidir se faria ou não a pergunta. Não conseguia se decidir.

— Seu Vicente, o senhor está bem? — perguntou o cobrador do coletivo.

— Sim, sim.

— Tem certeza, seu Vicente?

E o Vicente acordando daquele transe shakespeariano, olhou ao redor, não reconhecendo de pronto a paisagem local. Após alguns segundos de hesitação, levantou-se rapidamente e apertou o botão de solicitação de parada. Desceu rapidamente. Estava à frente de uma praça com árvores frondosas; correu para se proteger do chuvisco fino que, agora, lentamente molhava suas roupas. Parou no meio do caminho, sentou-se no banco molhado e pensou:

“E agora, não tenho camisa e nem calça na minha mochila!"






















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