Pedacinho do céu
Outro dia, caminhando pelo rua, absorto, olhar vagando a esmo, as pernas já estavam bambas de tanto andarem e já não tinham a menor ideia para onde poderiam me levar, suas ideias já tinham chegado ao fim e, mesmo assim, continuavam sua saga de andarilhas sem rumo a carregar um corpo que não sabia aonde queria — ou deveria — chegar. Pois é, a vida tem dessas coisas, já dizia o poeta. Há dias que, simplesmente, não andam.
De toda sorte, o caminhar tem lá suas importâncias. Vejamos, dizem que ajuda com a saúde, que uma caminhada de trinta minutos, diariamente, faz bem ao coração. Acredito, acredito mesmo. Mas quero saber se as pernas concordam em trabalharem tanto em favor dos outros. É aquela história de ter de combinar com os russos, entendem?
E a caminhada sem rumo continuava, sem graça, triste, solitária, sem qualquer coisa que animasse o pedaço. Que tédio!
Entretanto, sem qualquer aviso, sem que ninguém esperasse — nem mesmo as pernas —, os ouvidos captam algo que poderia ser interessante. Imediatamente, começa um verdadeiro alvoroço pelas cercanias porque, tão logo ocorreu a interceptação, os ouvidos enviaram comunicados com a tarja vermelha de urgente para os olhos, cabeça, braços, quadril e, também, para as pernas, que a essa altura do campeonato já não agiam só, posto que agora era uma verdadeira equipe à procura daquilo que os ouvidos deram como alerta máximo.
Nesse meio tempo, os ombros também se engajaram na caçada — isso mesmo, virou uma verdadeira caçada.
— O que poderia ser aquilo? — perguntavam os ouvidos, tentando entender tudo que se passava. E dizia para os olhos não pararem de investigar o ambiente. Ao mesmo tempo, enviava comandos para que a cabeça se atentasse para tudo que os olhos detectassem, não deixasse passar nada.
E a investigação continuava.
As pernas, coitadas, continuavam fazendo o que elas sabiam: caminhavam e caminhavam para todos os lugares. O quadril girava o corpo para um lado para o outro na ânsia de descobrir algo que desse rumo às pernas. Os braços se sentiam completamente inutilizados, pois não tinham a menor condição de apontarem para qualquer lugar, dar uma direção, que fosse. — Céus, que loucura!
De repente, as pernas param exaustas. Não havia mais para onde caminhar. Os olhos fecharam-se, na tentativa de mudar o cenário quando se abrissem. Em vão. O quadril, de um lado para o outro... e nada. Os braços assumiram a típica postura da defesa, cruzaram-se à frente de um peito arfante. Nesse momento, todos se viraram para o cérebro, que estava calmíssimo e com um semblante de êxtase, e perguntaram por que ele não estava participando da investigação, ainda não tinha ajudado em nada.
— Que investigação?
— Queremos decifrar esse enigma detectado pelos ouvidos.
— Não tem enigma algum.
— Como não? — berraram os outros.
— Estou caminhando há um tempão, sem rumo, na tentativa de descobrir de onde vem isso — falaram, sem paciência, as pernas.
E começou uma verdadeira baderna com todos falando ao mesmo tempo, sem ninguém se entender. Quando de repente...
— Cabeça, vire à esquerda.
— Olhos, mirem bem próximo da esquina.
— Braços, apontem para depois do poste de energia.
— Atenção, pernas e quadris, trabalhem em perfeita sincronia ao comando dos ouvidos.
Essas foram as ordens do cérebro,.
Nesse instante, ajudados pelo cérebro, que assumira a situação, os ouvidos informaram que o mistério, na verdade era um som e que deveriam rumar em sua direção. E todos trabalharam em perfeita sintonia. Chegando mais perto, o cérebro avisou que conhecia tal som, e que é chamado de música. Todos ficaram alvoraçados, magnetizados, seduzidos. Sim, aquele fenômeno enchia a todos de uma maneira singular, simples. E perguntaram:
— Como tal coisa consegue ser tão envolvente?
— Essa resposta nem mesmo eu a tenho. — Deixem-se levar, cada um de vocês, por ela e vejamos no que vai dar.
Acabara de surgir a dança.
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