O
HOMEM E O POETA JOÃO DO VALE
Pedreiras, denominada
pelos poetas, artistas e saudositas como a “Princesa do
Mearim”, que no passado foi uma das maiores produtoras de arroz do
Brasil, cidade cujo povo é bastante religioso, ordeiro e hospitaleiro, que tem
como santo padroeiro, São Benedito. Terra de poetas mil, no dia 11 de outubro
de 1933 viu nascer no povoado Lago da Onça, distante a seis quilômetros da
cidade de Pedreiras, o seu filho mais ilustre, João Batista Vale, que depois
veio a se consagrar e ficar eternizado na memória do povo, simplesmente como
João do Vale.
O
Brasil viu teus compositores,
E
cantou com o humilde João,
Que
lançou, deste Vale pro mundo
Mais
respeito pelo Maranhão. (LOBATO apud KRAUSE, 2010).
Segundo o poeta e
historiador pedreirense Filemon Krause, o povoado Lago da Onça é o local exato
do nascimento de João do Vale, e está fixado em férteis terras da Saudade, onde
se localizavam as extintas fazendas de escravos de propriedade do Coronel
Raymundo Ferreira Vale e do Alferes Ricardo Ferreira Vale. (KRAUSE, 2008, p.9).
João do Vale é o quinto
filho do casal de camponeses Cirilo e Leovegilda. Sempre viveram com
dificuldades, realizando trabalhos duros, braçais e na arte da colheita dos produtos
que cultivavam na roça, de costumes, em terrenos alheios. Foi uma época muito
difícil para o casal e toda a sua família.
Viviam de favores nas
fazendas de coronéis. Ninguém se importava com eles ou falava a seu favor.
Cabia-lhes somente a única responsabilidade de criar e educar os cinco filhos –
Aurélio, Antonio, Cleide, Miguel e João. Nesse período, um déspota representava
o sistema coronelista a serviço do Governo que, com mão-de-ferro existia para
reprimir, manipular e escravizar o homem do campo. Sobre coronelismo, o
historiador João Paulo Mestieri escreveu:
O coronelismo é
a manifestação do poder privado - dos senhores de terra - que coexiste com um
regime político de extensa base representativa. Refere-se basicamente a
estrutura agrária que fornecia as bases de sustentação do poder privado no
interior do Brasil, um país essencialmente agrícola. Definido como um
compromisso, uma troca de proveitos entre o Poder Público, progressivamente
fortalecido, e a decadente influencia social dos chefes locais, notadamente dos
senhores de terras. A força dos coronéis provinha dos serviços que prestavam ao
chefe do Executivo, para preparar seu sucessor nas eleições, e aos membros do
Legislativo, fornecendo-lhes votos e assim ensejando sua permanecia em novos
pleitos, o que tornava fictícia a representação popular, em virtude do voto
"manipulado”. Esses grandes fazendeiros eram chamados de coronéis e seu
sistema de dominação, o coronelismo, cujo papel principal cabia aos coronéis.
Os coronéis acabaram assumindo um grande poder. O coronel era, sobretudo, uma
figura local, exercendo influencia nas cidades menores, mais afastadas e suas imediações.
(MESTIERI, 2009).
O casal Cirilo e
Leovegilda, na esperança de encontrar dias melhores na vida, para si e seus
filhos, resolve abandonar a vida do interior e se mudar para Pedreiras, e ao
chegar à cidade vai morar na Rua da Golada, situada à margem direita do Rio
Mearim, com vista para a Tresidela que nessa época ainda era um bairro de
Pedreiras.
Enquanto isso, o menino
João crescia livre, solto, correndo, brincando e dando os seus mergulhos com o
seu corpo franzino nas águas barrentas do Rio Mearim. Muito cedo, ainda menino,
João começou a perceber que a vida não era tão fácil assim: carregava água do
rio para o consumo e as necessidades de higiene da família, pois naquela época
ainda não existia uma política de sistema de abastecimento de água para os
pedreirenses.
Contam os mais antigos,
em rodas de conversas, que João do Vale quando menino tinha as pernas cambotas,
e por isso recebeu o apelido de “Pé de Xote”; também era gago. Por um bom
período, o menino João foi morar com uma senhora, amiga de sua mãe Leovegilda,
de nome Maria da Conceição Pereira, após o falecimento desta, a família o
recebeu de volta. A história narra que o contato de João do Vale com a escola
não foi muito feliz para o pobre e negro menino.
Quando estava cursando
o terceiro ano primário em uma das Unidades de Ensino de Pedreiras, foi
obrigado por atitudes racistas a dar a sua vaga para um filho de um coletor que
tinha acabado de chegar à cidade de Pedreiras. A
história de João do Vale tem o seu percurso mudado no instante em que acontece
esse maldito e maléfico acontecimento vergonhoso, o de ser tirado à força de
sala de aula, sem respeito ao ser humano e sem nenhuma justificativa, uma
criança carente e indefesa, pelo simples direito de estudar.
Compara-se tal tragédia
com a mesma truculência e maldade que os políticos de Pedreiras, anos atrás, cometeram
ao mudarem por conta própria o percurso do Rio Mearim. Se ao rio, esses
senhores “poderosos” causaram um crime ambiental a ponto de calejarem em parte
a nossa fonte de vida, em João do Vale, as consequências foram maiores: moral e
psicológica que o traumatizaram até o seu último dia de vida.
A Constituição Federal
de 1934 que foi promulgada um ano depois do nascimento de João do Vale, no
capítulo I que fala dos direitos e deveres individuais e coletivos já rezava
que todos deveriam ser tratados de forma igual, pois ninguém deveria receber
tratamento diferenciado, ter privilégios ou sofrer perseguição devido a sua
classe social, conforme se transcreve a seguir: “Todos são iguais perante a
Lei. Não haverá privilégios, nem distinções, por motivo de nascimento, sexo,
raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças
religiosas ou idéias políticas.” (BRASIL, 2007, p. 15).
Sobre esse
acontecimento, o próprio João dá o seu depoimento de desabafo, que se encontra
no livro “Pisa na fulô, mas não maltrata o carcará”, de autoria de Márcio Paschoal:
Na época em que
eu cursava o primário, foi nomeado um coletor novo para Pedreiras. Ele levou um
filho em idade escolar. Na escola tinha uns trezentos meninos alunos, mas
escolheram logo eu para dar lugar ao filho do homem. E eu senti, é claro! Resolvi
nunca mais ir estudar. Não tinha porquê. Então, de manhã, eu pegava o meu saco
de merenda e enchia de pedras, ia para cima do muro do colégio e na hora do
recreio mandava pedra em todo mundo, por estar com inveja, por não concordar
com aquela injustiça. Tinha dia que botavam um inspetor lá, mas eu dava a volta
e na hora do recreio mandava pedra. Daí, todo mundo comentava: ‘Esse menino não
dá pra nada na vida.’ Hoje eles botam rua com meu nome, me homenageiam, só para
desmanchar o que fizeram... Mas nem Deus querendo eu esqueço. (VALE apud PASCHOAL, 2000, p. 20-21).
João tinha um irmão de
nome Aurélio que já vivia bastante tempo em São Luís, era o mais velho da
família, e na época era terceiro sargento da polícia militar. Aurélio resolveu
então levar para a Capital seus pais e seus irmãos, e lá vai João do Vale morar
em São Luís onde foi vendedor de frutas na feira da Praia Grande, sem
esquecer-se de relatar a experiência anterior que o mesmo já tinha como
vendedor de pirulito, arroz doce e mugunzá na cidade de Pedreiras. O talento e
o gosto pela música já haviam se manifestado no menino, influência que tivera,
ouvindo o pai cantar cantigas religiosas e africanas quando estavam na roça
cuidando do plantio. Quando percebeu que tinha queda para a música, o menino
largou tudo e resolveu fugir de casa e se lançar no mundo em busca do seu
sonho; e foi com a ajuda de uma companhia de circo que fugiu de São Luís para
Teresina. Em Teresina foi ser ajudante de caminhão, rodando para Fortaleza,
conforme se lê no livro de Marcio Paschoal: “Aí, de Fortaleza, eu escrevi uma
carta para meu pai. Perdão, pai, por ter fugido de casa. Não tinha outro jeito,
pai. Pedreiras não dá pra gente viver feliz. Não quero mais ficar vendendo
banana, vendendo pirulito em São Luís. (VALE apud PASCHOAL, 2000, p. 23).
Depois de Fortaleza, o
seu próximo passo foi Salvador onde foi ser ajudante de pedreiro por uma
temporada. Dizia que seu avô certa vez leu a sua mão e lhe disse que um dia
iria ser muito rico, e acreditando nesse sonho utópico rumou para Minas Gerais;
foi ser garimpeiro na cidade de Teófilo Otoni onde só teve desilusão de
encontrar ouro ou diamante. “O que eu encontrei foi só formigueiro”, (VALE apud SILVA, 1980).
Planeja sair do
garimpo, mas teria que sair escondido para não passar a ideia aos companheiros
que pudesse estar levando dinheiro e ser morto por bandidos, pois é só o que ocorre
em garimpo. Então, pensa numa estratégia genial: sair do garimpo escondido na
boléia de um caminhão rumo ao Rio de Janeiro. Em dezembro de 1950 realiza o seu
sonho: pisa pela primeira vez no Rio de Janeiro e consegue emprego de ajudante
de pedreiro, onde trabalha e dorme no canteiro de obras. Mas é nas andanças
noturnas, nas farras de bares, botecos, casas de show, espetáculos e rádios que
João do Vale começa a fazer contato com os artistas de nome daquela época e
aproveita para mostrar as suas letras.
Numa dessas andanças
noturnas encontra Tom Jobim, com quem toma porres e depois se torna amigo.
Segundo Paschoal (2000), Tom Jobim declarou em entrevista que “João do vale foi
um dos compositores mais fortes e autênticos que nós já tivemos”. Nesse tempo
não havia praticamente a televisão. Só existia o rádio como o maior meio de
comunicação de massa. Ter uma música tocada num programa de rádio naquela época
era a consagração para qualquer compositor. E era justamente isso que João do
Vale queria. Nada mais.
Quando a sua primeira
música foi gravada e reconhecida como composição de qualidade, João do Vale
passa a receber direitos autorais, e com isso, começa a demarcar o seu espaço
no mundo da música. Aos poucos vai conhecendo grandes figurões da MPB (destaque
para Luiz Vieira, Luiz Gonzaga, Tom Jobim, Chico Buarque de Holanda, Elba
Ramalho e outros), fazendo parte do dia-a-dia e da vida desses artistas.
Camarada João,
poeta e cantador, mestre da simplicidade e pureza, alma generosa que hoje voa
em sagrados planos astrais, livre na imensidão. Um dos maiores compositores
nordestinos de todos os tempos. Um amigo querido e cúmplice desde todo o tempo
que nasci na música popular. A bênção.” (RAMALHO apud PASCHOAL, 2000, p. 219).
Também teve uma
experiência no cinema, atuando como figurante, assistente de direção e até
compondo músicas para diversos filmes. No ano de 1959, João do Vale se casa com
Dona Domingas Rodrigues, uma mulher bonita, viúva e que tinha três filhos:
Raimundo Nonato Rodrigues Chagas, Fernando Castelo Rodrigues Chagas e Iara
Alexandrina Rodrigues Chagas. Além desses três filhos, Dona Domingas Rodrigues
ainda teve com João do Vale mais quatro: Paulo Roberto Riva Rodrigues do Vale,
Luiz Neiva Rodrigues do Vale, Lúcia Cleide Rodrigues do Vale e João Aurélio
Rodrigues do Vale.
João do Vale teve uma
vida marcada de sofrimento e glória. Quando menino, ainda na cidade de
Pedreiras, sofreu e sentiu na pele o peso da discriminação por ser negro e
pobre; na fama e na glória não fugiu às suas origens e provou com as suas obras
voltadas para a poesia engajada com as causas sociais. Rodou o mundo cantando
suas músicas, mas sempre que tinha um tempinho vinha a Pedreiras visitar seus
familiares e amigos.
A sua música “Carcará”,
quando foi apresentada no Show Opinião, fez tanto sucesso que passou a ser o
hino dos estudantes, sendo motivo para João do Vale receber da Universidade de
São Paulo, o título de Poeta do Povo. Foi reconhecido e condecorado no Governo
Federal do amigo José Sarney; gravou discos; participou de festivais, sendo que
o que marcou foi o “Show Opinião” onde sua música Carcará surgiu para o mundo;
ganhou prêmios e mais prêmios; fez composições inesquecíveis; cantou para São
Benedito, seu Padroeiro e também para sua cidade Pedreiras.
Pisa na fulô, pisa na fulô
Pisa na fulô
Não maltrata o meu amor
Pisa na fulô
Não maltrata o meu amor
Um
dia desses
Fui dançar lá em Pedreiras
Na rua da Golada
Eu gostei da brincadeira
Zé Cachangá era o tocador
Mas só tocava
Pisa na fulô
Na rua da Golada
Eu gostei da brincadeira
Zé Cachangá era o tocador
Mas só tocava
Pisa na fulô
Pisa na fulô, pisa na fulô...
Seu Serafim cochichava com Dió
Sou capaz de jurar
Que nunca vi forró mió
Inté vovó
Garrou na mão do vovô
vamos embora meu veinho
Pisa na fulô
Seu Serafim cochichava com Dió
Sou capaz de jurar
Que nunca vi forró mió
Inté vovó
Garrou na mão do vovô
vamos embora meu veinho
Pisa na fulô
Pisa na fulô, pisa na fulô...
Eu vi menina que tinha doze anos
Agarrar seu par
E também sair dançando
Satisfeita, dizendo
"Meu amor, ai como
É gostoso pisa na fulô"
Eu vi menina que tinha doze anos
Agarrar seu par
E também sair dançando
Satisfeita, dizendo
"Meu amor, ai como
É gostoso pisa na fulô"
Pisa na fulô, pisa na fulô...
De magrugada Zeca Cachangá
Disse ao dono da casa
"Não precisa me pagar
Mas por favor
Arranja outro tocador
Que eu também quero
Pisa na fulô"
De magrugada Zeca Cachangá
Disse ao dono da casa
"Não precisa me pagar
Mas por favor
Arranja outro tocador
Que eu também quero
Pisa na fulô"
Pisa na fulô, pisa na fulô...
Eu vi menina que tinha doze anos... (VALE, 1981 apud KRAUSE, 2008, p. 37-38).
Depois de ter sofrido
vários AVCs e ficar com sequelas, João do Vale falece em São Luís do Maranhão,
em 06 de dezembro de 1996. O corpo de João do Vale foi trazido para Pedreiras,
velado no Auditório que tem o seu nome, e no dia 08 de dezembro de 1996 foi
sepultado no cemitério Alto São José, atendendo a um pedido e um grande desejo:
“Quando eu morrer, nem que seja na China, mas quero ser enterrado em
Pedreiras”.
Em abril de 2001,
através de um plebiscito realizado em todo Estado do Maranhão, o compositor
João do Vale foi eleito o Maranhense do Século XX.
Segundo
o jornal O Estado do Maranhão, numa reportagem especial de retrospectiva, de 31
de dezembro de 2001, João do Vale recebeu 61 mil (40,3%) do total de votos
dados aos 10 concorrentes.
João do Vale se foi,
mas o seu perfume ficou boiando no ar.
Monografia defendida no curso de Letras da FAESF - 2010 - Joaquim Filho
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