OMBRO AMIGO
A vida moderna mostrou-se um tanto difícil. O tempo parece que não basta para o tanto que queremos realizar. O trabalho nos consome muito além do tempo estipulado, haja vista que os atuais meios de comunicação nos conectam diuturnamente e, simplesmente, não conseguimos ficar ao largo das discussões. A esteira tecnológica, também, alongou o tempo de que dispomos aos familiares e amigos. Sem dúvida alguma, houve ganhos significativos nas relações ao proporcionar maior proximidade a parentes e amigos distantes. Por outro lado, tanta interação com o outro associado à crescente diminuição de tempo para conosco mesmo vem acarretando sofrimentos com os quais não estamos habituados a conviver.
Outro dia, uma sexta-feira, juntamente com alguns amigos do trabalho, aproveitamos para relaxar um pouco e nos dispomos a um happy hour. Friso que cerveja gelada cabe em qualquer dia, hora e companhia, mas a da sexta-feira compartilhada com amigos no boteco é algo incrível. Ouso dizer que se compara a um divã.
Pedimos a primeira. Estava tão gelada, que chegou com aquela camadinha branca... vestida de noiva. Não nos fizemos de rogados, servimos os copos e levantamos o tradicional brinde. Brindamos a nós, à amizade, à noiva — ou melhor, às noivas, pois viriam muitas outras naquele dia — e até o Abreu, nosso garçom das antigas, também participou.
Entre uma cerveja e outra piada, o Gerson toca no meu ombro e diz: — Rapaz, tenho vivido tempos difíceis.
Olhei fundo nos seus olhos, calado, respirei fundo e perguntei: — O que foi, cara?
— Não sei, a vida está uma loucura. Parece que perdi o controle de tudo. Nada anda como costumava. Não sei...
E pegou seu copo de uma maneira diferente, com força, mas ao mesmo tempo, vacilante. Nunca tinha visto meu amigo daquela forma. Sempre fora o cara que alegrava os ambientes, amigo de todos, dono de uma capacidade incrível de ouvir o outro. Fiquei muito desconfortável com aquela confissão.
— Mas, diga lá, Gerson, do que se trata?
Aproveitou que o copo estava em sua mão e, como que para ganhar tempo, deu um longo e demorado gole. Acho até que o fez no automático. Colocou-o de volta à mesa, enxugou a boca com a mão e a recolocou no meu ombro.
— Parceiro, tenho sentido coisas estranhas — começou o Gerson. — Sinto-me numa prisão sem grades. Não estou conseguindo entender os cenários que estão se desenrolando à minha frente e, consequentemente, não estou sabendo conviver com eles — continuou, com os olhos cheios d’água.
Emocionado, abraçou-me dizendo: — Desculpa, amigo, estava precisando desabafar. Já estou mais aliviado.
Naquela noite fui para casa pensando em tudo que tinha se passado. As palavras do Gerson não saíam da cabeça. Também, não conseguia esquecer todo o gestual que exalava o seu sofrimento. Ao chegar à casa, entrei silenciosamente. Fui ao quarto dos meus filhos e os observei dormindo tranquilamente, numa paz que não seriam capazes que avaliar, e vivendo felizes suas vidas protegidos pela inocência. Fechei a porta de mansinho para não os acordar e me dirigi ao meu quarto. Lá, aquela a quem confiei o coração me aguardava. Dei-lhe um beijo um pouco mais longo que o de costume.
— Tudo bem? — perguntou ela.
— Sim, tudo na paz.
E, nessa noite, as minhas preces foram somente de agradecimento por todas as bênçãos concedidas, todas as experiências que nos conduziram até aqui e por todos os amigos que nos ensinam, mesmo quando, na verdade, clamam por ajuda.
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