sexta-feira, 9 de julho de 2021

Coluna do Carlos Augusto Martins Netto.

 VIDA LÍQUIDA

Por Carlos Augusto Martins Netto - Servidor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Farmacêutico, Escritor e Poeta.

Samuel acordou cedo, sua esposa ainda dormia aninhada embaixo dos lençóis. Pegou as roupas que iria usar e, com cuidado para não acordar sua companheira, saiu do quarto e foi ao banheiro para sua higiene matinal. Quando saiu, já vestido, foi para a cozinha preparar o café da manhã. Pegou o papeiro, encheu de água e colocou no fogo. Enquanto esperava a água ferver, pôs-se a pensar em como sua vida havia mudado. Quando criança, ao se levantar pela manhã, já encontrava a mãe colocando o café recém-coado — sim, café preparado no coador de pano, exalando aquele cheirinho característico que tomava de conta de toda a casa — na mesa acompanhado do leite bem quente e do cuscuz também preparado na hora. Não demorava muito, ele, os irmãos e seu pai sentavam-se à mesa, juntamente com sua mãe e todos juntos faziam a refeição matinal.

A água ferveu, Samuel colocou o pó, mexeu, apagou o fogo e despejou no velho coador de pano. Ele não abria mão daquele conservadorismo, pois reputava a ele um cheirinho de infância e de um tempo em que, segundo ele, as famílias eram mais unidas. De um tempo em que sua família, ao final da tarde, na boquinha da noite, logo após o jantar, saía para visitar os vizinhos e conversarem animadamente sobre os fatos corriqueiros do dia a dia de suas vidas, do bairro e da cidade, no caso dos adultos; já criançada ficava aprontando no meio da rua com suas brincadeiras infantis. Era um tempo em que a criação das crianças era muito rígida e não eram raros os casos daqueles mais sapecas serem repreendidos com castigos físicos. Outros tempos, outros costumes.

O café aprontou e Samuel fechou a garrafa térmica. Nesse momento, correu a vista pela casa e se deu conta de que somente ele havia levantado. 

Abriu o armário debaixo da pia da cozinha, pegou uma frigideira grande, colocou-a no fogão. Ato contínuo, cortou um pão ao meio, passou margarina e começou a esfregá-lo na frigideira enquanto ela esquentava. Não demorou muito e a cozinha foi preenchida pelo cheiro de pão frito. — Uma delícia! — disse Samuel para si mesmo.

Sentou-se à mesa, sozinho, para sua refeição. Estava feliz. Molhou o pão no café com leite quente — hábito que adquirira quando criança e tinha de tomar o café da manhã rapidamente, pois tinha de sair com a mãe para que ela o deixasse na escola. O dia amanhecera radiante com os raios solares entrando pelas frestas das portas e janelas e aquecendo aquela manhã típica de julho em que as primeiras horas são levemente resfriadas por agradável brisa a roçar pela pele ainda morna, recém-saída das cobertas. Finalmente, tinha conquistado o sonho da casa própria e aquele primeiro café estava tendo um gosto todo especial.

Lembrou-se de que seus pais não saborearam esse sabor. Não conseguiram adquirir a casa própria. Contudo, ainda se emociona quando seu pai presenteou a ele e seus dois irmãos com uma bicicleta — sim, uma para os três, e ai de qualquer reclamação! — para que eles pudessem se divertir com os amigos do bairro. — Eram tempos difíceis! — exclamou Samuel com um certo ar saudosista.

Finalizou seu café da manhã, lavou o papeiro, a frigideira, a xícara, o pires e a colher que usara e os deixou no escorredor. Limpou a mesa e saiu para o trabalho. Iria começar um trampo novo naquele dia e não queria chegar atrasado. Somente nesse ano, já era a segunda vez que trocara de empresa em virtude de melhores condições salariais e de ambiente de trabalho. Muito diferente de seu pai que tivera o mesmo emprego por toda a vida.

— Como os tempos estão mudados — refletia enquanto dirigia a caminho do trabalho. — Que loucura, esse mundo contemporâneo em que a liquidez do cotidiano se impõe às vidas sem pedir licença!


























Nenhum comentário:

Postar um comentário