segunda-feira, 28 de agosto de 2023

COLUNA DO POETA E ESCRITOR CARLOS MARTINS

 FUSCA CELESTIAL

Carlos Martins (28/08/2023)

O ano... já não me lembro. O tempo... esse sim, o melhor tempo de todos. Um tempo em que todas as aflições se resumiam em saber a que horas viria a permissão materna para jogar bola; e ainda usando a fachada da casa do vizinho como baliza. É claro que o filho do vizinho estava envolvido na situação, sendo também ele um dos meus grandes amigos de infância.

A pelada começava sempre quando o sol esfriava. É, meus amigos, lá na minha terra tinha esse relógio esquisito, as tarefas vespertinas em local desabrigado sempre se davam quando o sol esfriava porque o calor é inclemente. Parece até que o sol por aquelas bandas está um palmo mais baixo. Assim, era preciso esperar por esse momento, pacientemente.

Naqueles tempos em que a molecada não dispunha de celulares, tablets, computadores e até a televisão ainda era muito limitada; nessa época, o sinal em minha cidade só era captado pelas antenas altíssimas em períodos muito específicos. Então, parte da diversão era descobrir o que fazer. E para esperar o sol esfriar, lembro que me deitava próximo da porta de entrada da casa do meu avô — com ela aberta, é claro! — e posicionava minha cabeça para ficar entreolhando o céu que se descortinava por trás da fachada da igreja de São Benedito. Sim, meu avô tinha como vizinho o padroeiro da cidade. — É o fraco, de vizinho!

E, assim, deitado no largo corredor da entrada da casa, sentindo a frieza benfazeja da lajota a proporcionar certo conforto térmico ao meu corpo, ficava horas e horas a mirar as nuvens e tentando correlacionar com a figura de algo conhecido. A ciência explica que em virtude de o cérebro trabalhar com associações, ele busca sempre identificar padrões. É por isso que conseguimos ler textos elaborados somente com números que nos fazem lembrar os padrões de determinadas letras.

Enxerguei muitas coisas naqueles momentos de contemplação celeste. Usando a torre da igreja como ponto de referência, conseguia ver uma nuvem se aproximando de outra, lentamente, juntarem-se e, de repente, lá estava um fusca. — Caramba, aquilo era incrível! Lembro que, certa vez, consegui divisar a aparência de um elefante. Sim, com suas enormes e grossas patas, a tromba curvada para cima, tudo, tudo. O elefante estava completinho.

Muitas vezes, cheguei a adormecer ali. Na entrada da casa, com a porta aberta. Acho que durante esses cochilos, acabei deixando de enxergar o quão maravilhosos eram aqueles momentos, aquelas figuras, aqueles tempos.

E quando o sol esfriava, a meninada tomava conta da rua. Até os carros, ao passarem por lá, diminuíam a velocidade porque seus condutores já sabiam que aquelas paragens eram dominadas pela infância trabalhando duro para a formação de adultos conscientes de seus deveres como seres humanos e que, um dia, seriam chamados a trazerem para a realidade todas as figuras que povoaram a sua imaginação infantil.

P.S.: De vez em quando, a meninada fugia dos olhares atentos das mães e, sem esperar o sol esfriar, formavam uma pelada dentro da igreja, sob a vigilância protetora de São Benedito. Mas isso é assunto para uma outra crônica.























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